Multitarefa ou Simultaneidade
É possível ser multitarefa ou o que vale é fazer uma coisa de cada vez, dentro e debaixo de um contexto de múltiplos desafios?
Foi um acontecimento marcante. Tinha uns 15 anos e conheci a figura do Sr. Frederico Loepert no clube de xadrez que frequentava. Tornou-se de pronto meu herói. Tirei do mais alto grau de minhas admirações o Mr. NBA MVP Wilt Chamberlain. Também fiz descer de seu lugar o Sargento Vince Saunders da série televisiva de Combate - interpretado por Vic Morrow.
Em se tratando da minha adolescência, não houve um tradicional rito de passagem. O que sabia, e percebia, era que eu atravessava algum rio. Quando a gente começa a empreender e explorar a vida à sós, mudamos de patamar. Por mais singelo que seja o nosso caminho pessoal, em tese avançamos - se criança, à vida juvenil, se jovem à vida adulta, se adulto à vida madura até a senioridade.
Vou contar mais um episódio pessoal, a ilustrar onde pretendo chegar. Um ano antes desse acontecimento, quando ainda morávamos na América, eu havia ido por conta própria ao grupo de teatro local. Participei do teste de casting da peça musical Camelot, e ganhei o papel do escudeiro de Lancelot, com três linhas do script. Eu entrava em cena puxando o rei Arthur pela capa, estatelado no chão, para em seguida jogar-lhe um balde d’água na cara. Uma vez desperto, eu e meu amo descobriríamos em assombro, quem de fato ele era.
As apresentações da peça coincidiram com o término de nossa temporada no exterior, e logo retornamos como família ao Brasil. Chegamos no meio do ano escolar, e pelos caminhos normais, teria que esperar o ano seguinte para retomar meus estudos. Mas, num lance de sorte (e de benção) um regime especial havia criado uma unidade em extensão do Curso Científico (hoje Ensino Médio). O MEC havia fechado uma escola particular, e todos os seus alunos precisavam de uma nova escola. Eles e eu!
As aulas haviam começado no meio do ano, casando com o meu retorno. Porém haveria um preço. Eu teria que atravessar São Paulo, partindo da Aclimação até a Avenida João Dias - tomando dois ônibus, num trajeto de duas horas de trânsito, bem no horário de pico com a lotação à plena. E depois voltava já tarde da noite, a tempo de pegar o último ônibus elétrico no Viaduto 9 de julho, de volta à Aclimação.
Mesmo assim, encarava esse desafio com naturalidade, e sempre motivado pela quebra de rotina que trazia toda a sorte de novidade.
Não à toa, a vida ganha paralelo em jornadas épicas. Estas revelam o indivíduo enfrentando seus monstros internos e externos. Matar o dragão - na linguagem de Jordan Peterson. Revela em cada mosaico no quadro da vida, do que de fato sua alma é feita.
E assim caminhei na adolescência. Ou se preferir, atravessei parte da vida, construindo-a em conta própria, rumo à autonomia. Bençãos e vicissitudes em suas doses normais. A vida sempre vem em pacote completo - tudo incluso.
Pois bem, já contei aqui minha paixão pelo jogo de xadrez. Foi lá, na Galeria Borba Gato que conheci pessoalmente seu Frederico, o nosso destacado campeão. Naquela noite, aproveitavamos sua visita (ele não era muito frequente - não sei, talvez não tão social), para que nos brindasse com uma demonstração de simultânea. Não acreditei de primeira. Já tinha lido a respeito de Grandes Mestres jogarem ao mesmo tempo com dezenas de pessoas. E lá estava eu convocado a ser um dos vinte e tantos oponentes de seu Frederico. Mística e carisma do período pré-nerdiano (ainda não tinham inventado o PC). As mesas com seus tabuleiros e peças, foram arrumadas formando um grande U, e ele permaneceria ao centro, de pé, para que pudesse se movimentar livremente.
Peão e4 ... tloc, tloc, tloc, tloc ... Passou por todas as mesas, jogando de brancas e dando o primeiro lance. E, retornando à primeira mesa, aguardava o lance das pretas, e já respondia de imediato, passando para o próximo oponente. Bastava o oponente tocar na peça preta projetando a jogada, que ele respondia de forma instântanea, dando seu lance de brancas, e partia para a mesa seguinte.
Foi um show de habilidade, inteligência e de nobreza (as batalhas no tabuleiro são mais ferozes que duelos de esgrima). Aceitei a oferta de empate lá pelo meio do jogo, e me juntei aos sapos que se deliciavam nas derrotas que nosso campeão impunha aos companheiros remanescentes.
A forma como seu Frederico jogou a simultânea deve ter mexido comigo, pois em muitas situações me vejo dando lances em diferentes tabuleiros - um de cada vez, e a seu tempo. Porém todos no jogo do momento ou do dia!
A simultaneidade de projetos é a minha droga, a minha adrenalina de boa cepa, a minha forma de viver e de realizar minha missão. Impossível ficar parado diante de um desafio que mereça solução. E a fome por desafios, não se contenta com a simplicidade que a vida oferece. Está no meu sangue, no gene, nos genes, na carne, no DNA, na alma!
Creio que cada um de nós consegue equilibrar seus pratos chineses girando em movimento, sobre a cabeça. Um pouco de habilidade, mais um pouco de treino, uma dose de esforço, coragem e destemor. Lá está o número de circo sendo realizado a cada e todo dia.
O segredo, no fundo é coordenar para que seja ao mesmo tempo, porém um de cada vez. E chegando à frente do adversário, esperar o lance para daí fazer o seu.
P.S. -
Fizemos uma pequena campanha no Facebook para novos assinantes free, e o resultado apareceu ao longo do dia de ontem.
Os que estão chegando, recebam as boas-vindas e o meu agradecimento.
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